Crise financeira, grupo fechado e Túlio artilheiro: o título do Botafogo de 1995


Da desconfiança inicial à conquista final, time fez história no Glorioso. Nesta 5ª feira, às 14h, GloboEsporte.com exibe segundo jogo da decisão entre Santos e Botafogo

Header Botafogo 20 anos Brasileirão 0 (Foto: GloboEsporte.com)

Pela esquerda, Sérgio Manoel ajeita a bola. Trata-a com carinho. Olha para a área, onde os goleadores aguardam. Túlio, Donizete... Mas a bola cai mesmo é na cabeça de Jamir, que toca para o chão. A pelota sobra nos pés de Túlio Maravilha – impedido, é verdade –, sempre ele, o artilheiro, oportuno, no lugar certo. Ele rola, se ajeita, gira e chuta para o gol de Edinho.

Marcelo Passos cobra falta. Wagner voa. Faz milagre. Com a ponta dos dedos, coloca o perigo para fora. Dentro da área, Giovanni chuta no meio das pernas do zagueiro. Wagner, mais uma vez, se estica, agora caído no chão, para evitar uma tragédia. Marcelo, de novo, cobra falta. Semelhante ao primeiro lance. A bola tinha endereço certo, no canto superior da trave. Não fosse o goleiro alvinegro...
Botafogo 95 - 5 (Foto: Agência Globo)Túlio Maravilha com a bola, a qual tratou tão bem naquele campeonato de 95... (Foto: Agência Globo)


De um extremo a outro do campo, os heróis de 1995 dispunham-se em campo. Naquela final, naquele 1 a 1 diante do o Santos, Túlio era o herói esperado. O fanfarrão. O brincalhão. O goleador. Adjetivos não faltam. Como sempre decisivo, prometeu que faria o gol do título. E fez.

Do outro lado, embaixo das traves, o herói menos esperado brilhava. Sem estampar as capas de jornais, nem contar com tantos gritos eufóricos das arquibancadas, o discreto Wagner determinou o título. Esticou-se, espichou-se, pulou e afastou os perigos da meta alvinegra. Salvou o Botafogo com, ao menos, três defesas impressionantes. 

Com a rede balançada de um lado e bloqueada do outro, o Botafogo conquistou o título brasileiro. Contrariando todas as expectativas, o time de Paulo Autuori superou as adversidades financeiras, técnicas e estruturais para colocar seu nome na história. História que começa bem antes de 17 de dezembro.
Nesta quinta-feira, o título completa 20 anos. Às 14h, o GloboEsporte.com exibe o segundo jogo da decisão de 1995 entre Santos e Botafogo, que terminou 1 a 1 e deu o título ao Alvinegro carioca.
O REGULAMENTO
Botafogo 95 - 4 (Foto: Agência Globo)Botafogo classificou-se para a final por ter vencido o segundo turno do seu grupo (Foto: Agência Globo)
Bem diferente dos Campeonatos Brasileiros atuais, o de 1995 contou com 24 times separados em dois grupos que se enfrentaram em dois turnos. No primeiro, os times de cada grupo jogaram entre si. No segundo, enfrentaram adversários do outro grupo. Os classificados para as semifinais seriam os vencedores de cada chave em cada turno (Cruzeiro e Fluminense se classificaram no primeiro turno, enquanto Santos e Botafogo garantiram a vaga no segundo).

No regulamento, se uma equipe vencesse os dois turnos, ganharia um ponto extra, abrindo uma vaga para o time de "melhor índice técnico" (a soma de pontos dos dois turnos). Nas semifinais, se o time com o ponto extra vencesse o jogo de ida, não seria disputado o de volta.

Tanto na semi quanto na final, os únicos critérios de desempate seriam saldo de gols e índice técnico.
CRISE FINANCEIRA
Se existia um adversário ao Botafogo naquele ano, era a crise financeira pela qual o clube passava. Sem dinheiro, os salários estavam atrasados e não havia como investir em um grande time. Os rendimentos eram pagos aos atletas conforme os estádios iam lotando, gerando receita. 
Não tinha outro adversário que não os salários atrasados. Ficávamos três, quatro meses atrasados. O presidente, às vezes, fazia umas loucuras e conseguia nos ganhar".
Beto, meia de 1995
E o Botafogo foi vencendo os jogos. Lotando os estádios. E, assim, os atletas foram recebendo, aos poucos. 
– Não tinha outro adversário que não os salários atrasados. Ficávamos três, quatro meses atrasados. O presidente, às vezes, fazia umas loucuras e conseguia ganhar a gente. Em alguns jogos que lotavam no Maracanã, ele chegava no vestiário e mandava dividir a renda com a gente para pagar os salários atrasados. Com essas atitudes, ele foi trazendo a gente para perto dele. Fomos em busca de mais vitórias. Ele estava apostando na gente. Só vencendo é que poderíamos cobrar. Se não estivéssemos ganhando, como cobrar? “Vocês não estão ganhando, a gente não tem renda”, poderiam dizer. Mas vencemos e cobramos. Fomos nos unindo em busca das vitórias para, lá na frente, poder cobrar – contou Beto.
Botafogo 95 - 1 (Foto: Agência Globo)Não tinha salário atrasado que impedisse esse time de jogar e vencer (Foto: Agência Globo)


Para ganhar o grupo, Montenegro chegou a pagar bicho aos atletas mesmo após derrotas. Caso do jogo contra o Palmeiras, na primeira fase, quando o Bota perdeu por 2 a 1. Considerada pelo presidente a melhor atuação até então, pagou R$ 550 aos jogadores.

Para arrecadar mais dinheiro, o Botafogo vendeu alguns mandos de campo naquela campanha. E ainda realizou amistosos entre um jogo e outro. Os cachês variavam entre R$ 40 e 60 mil, em média. O processo, no entanto, era pesado para os atletas.

– Era muito desgastante, muita viagem. Foi tudo muito corrido, mas valeu a pena. No fim, veio a premiação – disse Guto.
TIME BOM E BARATO
Quem acreditava no Botafogo no começo do campeonato? Quem acreditava no desconhecido Paulo Autuori? Em Gonçalves e Donizete, de bom futebol apenas no México? Iranildo, vindo sem custos do Madureira? Leandro Ávila, após briga com o Vasco?

Com problemas financeiros, o Botafogo apostou nos empréstimos para formar sua equipe. Ao custo de R$ 710 mil, vieram 14 jogadores. No comparativo: o Flamengo, do "ataque dos sonhos" e que viveu momentos de crise na competição, gastou R$ 15 milhões.

– Começamos muito desacreditados aquele campeonato. Time montado de última hora, revelando jogadores no meio do campeonato – relembrou Wilson Goiano.


– Aquele time foi formado semanas antes do campeonato, com jogadores experientes, mas com outros que ainda eram desconhecidos. Foi feita uma avaliação por parte da diretoria, analisando perfil e qualidade técnica. Naquela época era mais voltado à qualidade técnica. Apesar de que hoje aquele time seria bem estruturado taticamente também. Não é um tipo de trabalho que indico a fazer. Às vezes dá certo. E naquele ano deu. Até pelos conceitos usados pelas diretorias de antigamente, em que se formava equipe diferente a cada competição, basicamente. Hoje mudou isso já. O ambiente era muito bom. Todos tinham um relacionamento bom. Alguns com afinidades maiores, claro… Várias faixa etárias. Acho que eu era o mais velho, tinha 32 anos – lembrou Gottardo.
DUPLA DINÂMICA
Túlio Maravilha quase deixou o Botafogo antes do começo daquele Brasileirão. No dia da reapresentação do time, o atacante não apareceu para treinar. Estava em Goiânia. Irritado, Montegro chegou a chamá-lo de "mau caráter" e prometeu multá-lo caso não aparecesse no Rio no outro dia.

– Como me multar se não recebo salários há três meses? – retrucou o jogador, na época.

Com a crise, Túlio quase foi parar no Corinthians. Mas o presidente bateu o pé, não o vendeu. Os botafoguenses agradecem. Não fossem os seus 23 gols marcados na competição, talvez o Alvinegro não tivesse chego ao topo.

Tão importante quanto Túlio, foi Donizete. No fim de julho, o atacante foi confirmado como reforço, vindo do México. Os dois formaram a dupla dinâmica do Botafogo. Com bem menos gols que o companheiro – seis em 24 jogos –, foi tão ou mais decisivo pelas suas assistências, pela sua movimentação e por sua inteligência ao projetar as jogadas.

Uma lesão na reta final quase complicou a vida do Botafogo no momento mais decisivo. Mas chegaremos lá...
ATAQUE DOS SONHOS?
É quase unanimidade entre os agora ex-jogadores escolher o confronto contra o Flamengo como um dos mais importantes e marcantes naquele campeonato. Isso porque, além da vitória por 3 a 1, não faltaram elementos para animar o confronto.

Na ocasião da partida, no fim de setembro, o Rubro-Negro já vivia momentos de crise por suas atuações fracas no Brasileiro. Mas ainda era considerada uma grande equipe, dona do "ataque dos sonhos" com Romário, Edmundo e Sávio. E era quem merecia todos os destaques da época. 


– O Flamengo tinha um super time, o "ataque dos sonhos", equipe que era considerada a melhor do campeonato pela qualidade dos jogadores. Tinha Romário, Sávio, Edmundo. Naquele jogo, o Botafogo mostrou que era uma equipe. Apesar de não ter jogadores de muita fama, estava no campeonato de maneira consolidada e competitiva, com condições de vencer qualquer adversário – lembrou Gonçalves, autor de um dos gols, junto de Túlio Maravilha e Marcelo Alves. Edmundo marcou para o Flamengo.

– Jogo ficou muito marcado. O Autuori pegou muito esse jogo para mostrar que nós tínhamos capacidade de chegarmos até a final e sermos campeões. Modelo que ele tirou daquele jogo para manter as palestras dele durante todo o campeonato – relembrou Marcelo Alves.

Realizado no Castelão, em Fortaleza, por venda de mando de campo, o jogo foi o de maior público de todo o campeonato: 74.174 pessoas pagaram para assistir ao duelo.
GALO ATROPELADO

Apesar de ter empolgado na primeira fase, o Botafogo acabou derrapando em alguns jogos importantes – como contra o Cruzeiro – e terminou em quinto lugar. 

Mas aí veio a segunda fase. E o Botafogo parecia outro, mais ligado. Se houve um jogo que brindou todo aquele bom momento, esse foi a goleada esmagadora de 5 a 0 sobre o Atlético-MG, no Maracanã.
Esse time no início do campeonato era desacreditado, alguns jogadores desconhecidos, e, se venceu o Atlético-MG, opa..., alguma coisa tem esse time, pensavam".
Gonçalves, zagueiro de 1995
– Foi um jogão! O Atlético-MG tinha uma equipe muito forte. Aquele jogo marcou uma arrancada no segundo turno, já que o Botafogo tinha conseguido vitórias, mas não muito expressivas. E quando você faz 5 a 0 num Atlético-MG, um adversário tradicional... Ali, o Botafogo começou realmente a chamar a atenção da imprensa nacional. Esse time no início do campeonato era desacreditado, com alguns jogadores desconhecidos, e se venceu o Altético-MG, opa! Alguma coisa tem esse time, pensavam – disse Gonçalves, autor do primeiro gol daquela vitória. Donizete e Túlio Maravilha, com dois cada, fecharam o placar.
HORA DA DECISÃO
O Botafogo classificou-se para a semifinal com uma rodada de antecedência. A campanha era tão boa, que, mesmo perdendo para o Santos, teve a vaga carimbada – na última rodada, empatou com o Fluminense.


O adversário seria o Cruzeiro, com quem o Botafogo havia jogado duas vezes no ano e perdido as duas. E o Alvinegro foi para a final sem vencê-lo: empatou os dois confrontos e classificou-se pelos critérios.

– Foi um momento em que botamos os pés no chão. O Paulo Autuori chamou todo mundo para conversar, disse que poderíamos ser campeões, mas sempre com os pés no chão. Porque a euforia era grande. Como a equipe também era jovem, muita gente ficava empolgada. A confiança que ele passou, com o puxão de orelha ao mesmo tempo, acho que acendeu uma luzinha: "Temos totais condições de chegar ao título" – afirmou Jamir.

Emoção não faltou, especialmente no Maracanã. Foram três as bolas na trave, de Túlio, Beto e Donizete. Sofrimento. Wagner, como mostraria igualmente na grande final, fechou o gol, tendo grande atuação e realizando ótimas defesas.

PROVOCAÇÕES E FESTA ANTES DA HORA
Veio então o grande momento. Era a hora da final. O Botafogo enfrentaria o Santos, que surpreendentemente havia eliminado o Fluminense na semi – perdeu por 4 a 1 no primeiro jogo, mas reverteu para 5 a 2.

– O grupo estava confiante que poderia fazer história. Estava focado. Mesmo o jogo sendo bastante difícil, o pessoal estava confiante que poderia ganhar. O grupo já esperava por isso. Apesar de na imprensa não sair nada, de ser algo interno, estávamos confiando no título – contou Márcio Theodoro.
Na primeira partida, no Maracanã, deu Botafogo. 2 a 1, gols de Gottardo e Túlio. Vantagem importantíssima, como o próprio artilheiro gostou de exaltar logo após o fim da partida.

– Claro que essa vantagem é importantíssima. Primeiro porque nós não somos o Fluminense, e segundo porque vai ser muito difícil ganhar do Botafogo, quase impossível. Então, não tem jeito, o Botafogo é campeão – disse, na época, Túlio, que festejou seu gol dando soquinhos no ar, em uma "homenagem" ao ídolo santista, Pelé.
Claro que essa vantagem é importantíssima. Primeiro porque nós não somos o Fluminense, e segundo porque, para ganhar do Botafogo, vai ser muito difícil, quase impossível. Então, não tem jeito, o Botafogo é campeão".
Túlio Maravilha, em 1995
A empolgação pelos resultados das semifinais, entretanto, tomou conta dos torcedores paulistas, que comemoraram no Maracanã e gritaram "É campeão", mesmo com a derrota.

– Mesmo com a gente ganhando, o Santos saiu comemorando. Porque eles conseguiram uma virada contra o Fluminense na semifinal e acharam que iam conseguir contra a gente também. Perderam aqui (no Rio) por 2 a 1, mas acharam que iam reverter no Pacaembu. E aconteceu que não conseguiram – recontou André Silva.

E não foi só a festa dentro de campo. Durante a semana, o clima de provocações se seguiu. Ronaldo, zagueiro adversário, posou para foto com um pôster de "Santos campeão". De General Severiano, Túlio Maravilha fez promessas por um gol, que apelidaria de "Peixe Frito".

Donizete era a grande preocupação para a segunda partida. Lesionado na coxa, poderia ser um importante desfalque. Nos dias que antecederam os confrontos, só se falava na recuperação do atleta. Era dúvida. Mas foi a campo. Atuou os 90 minutos. E ainda deu uma arrancada célebre no segundo tempo, em que mandou uma bola no travessão.


– O Santos mereceu chegar na final. Qualquer resultado poderia acontecer. Sabíamos que iríamos fazer gol, porque sempre fazíamos. Tínhamos de procurar não sofrer os gols. Tínhamos um ataque muito bom. Túlio inspiradíssimo, mas o Donizete estava lesionado na coxa. Nossa preocupação era com ele. Jogador importante lesionado. No segundo jogo da final, eu e ele dividíamos o quarto na concentração, e ele reclamava muito de dor, o tempo todo, na posterior. Isso nos deixou um pouco apreensivos. Mas deu tudo certo – contou Leandro Ávila.

– Só não vencemos em São Paulo por uma lesão do Donizete, peça fundamental para a conquista. Se ele tivesse 100% fisicamente, teríamos vencido o Santos – afirmou Gottardo.

Com Donizete em condições, Túlio inspirado como sempre, Wagner fechando tudo e um grupo unido, o título só poderia ir parar em General Severiano.
FESTA ATÉ NA PISTA DO AEROPORTO
Eufórica pela conquista inédita do Campeonato Brasileiro, a torcida do Botafogo varou a noite festejando. Milhares foram ao aeroporto Santos Dumont para receber os campeões. E, com um atraso de cerca de duas horas para o desembarque, uma cena inesquecível.

A pista do aeroporto foi invadida. Às centenas, os torcedores iam correndo pelo local. Com a chegada do avião, muitos se penduraram nele. Outros subiram nas asas. Os jogadores que se encontraram do lado de dentro lembram dos acenos e das batidas nas janelas.


– A torcida invadiu o Santos Dumont, foi para cima do avião! Aí sobe o Tulio Maravilha em cima do carro de bombeiros junto do Montenegro. Nós, jogadores, nem conseguimos sair do avião, tivemos de ir num carro de polícia para ir para a festa de comemoração, em General Severiano. Foi uma loucura total aquilo – relembrou Carlão.

– Pessoal invadiu o aeroporto. Deu para ver com o avião já baixando um monte de formiguinha invadindo a pista, aquela doideira. Foi muito bom, muito diferente – afirmou Guto. 

Uma festa gigante, noite adentro, digna da campanha primorosa daquele ano. Dos desacreditados aos campeões. Título glorioso, de orgulho até hoje, 20 anos depois.
Botafogo 95 - 3 (Foto: Agência Globo)Título para ser festejado: geração de Túlio, Donizete, Wagner, Gonçalves e etc marcaram época (Foto: Agência Globo)

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