Presidente do Tribunal da Conmebol vê lição aprendida após caso Kevin
Caio Rocha crê que corintianos estão conscientizados após punição, relata cautela para a aplicação de penas e revela falta de avaliação da entidade
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"Agora existe ordem, e precisam tomar cuidado". A frase do presidente do Tribunal de Disciplina da Conmebol, destinada a clubes, torcidas e atletas que participam de competições organizadas pela entidade, já foi assimilada pelos torcedores do Corinthians. Essa é a opinião do comandante do tribunal, o advogado brasileiro Caio Rocha, de 32 anos. Passados três meses da criação do órgão e 23 dias da morte do boliviano Kevin Espada - no jogo entre San José e Timão em Oruro, na Bolívia -, ele cita o caso como emblemático para conscientizar não só os corintianos, como todo o público da Libertadores.
- Eu acho, por exemplo, que a torcida do Corinthians já está conscientizada. Houve o fato, e ela foi penalizada. Hoje, ela tem consciência de que o tribunal realmente funciona, e de que um ato de violência vai prejudicar o próprio clube e o próprio torcedor. Talvez a torcida de outro clube não esteja, mas, à medida que as coisas forem acontecendo, clubes, torcidas e atletas vão perceber que agora existe ordem e eles precisam tomar cuidado - afirmou.
Caio disse que o episódio em Oruro serviu de aprendizado também para os próprios membros do tribunal, que segundo ele ainda estão estabelecendo parâmetros nas punições. Acredita que é possível ter uma torcida mais civilizada na América do Sul, mas explicou que existe uma certa cautela para aplicar penas na tentativa de mudar a cultura continental, já que clubes e federações têm "força política" na Conmebol. Apesar de acreditar no rumo do trabalho, ele revelou que o tribunal ainda não recebeu qualquer avaliação por parte da entidade.
Nascido no Ceará, Caio também é vice-presidente do STJD e tem um escritório de advocacia. Formou-se na Universidade de Fortaleza (Unifor), com mestrado na Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). É casado, pai de três filhas e torcedor do Vasco. Disse que costuma assistir a jogos no estádio, mas se mostrou desanimado com o momento atual do time de coração, que acabou de ser vice-campeão da Taça Guanabara, primeiro turno do Campeonato Carioca.
Confira abaixo a entrevista com Caio Rocha, realizada na sede do STJD.
GLOBOESPORTE.COM: Como avalia esses primeiros três meses de atuação do Tribunal de Disciplina?
CAIO ROCHA: Eu acho que o tribunal tem tido muito trabalho. Foram três meses de muito trabalho, muita repercussão, muito maior do que eu imaginava, e acho que o tribunal tem demonstrado que veio realmente com uma nova mentalidade. Que veio honrar aquela intenção da Conmebol de trazer maior moralidade, maior rigor para a disciplina. Acho que o tribunal está indo num bom caminho. Tem aplicado penalidades rigorosas, mas também não tem exagerado na dose. Seria natural até ser um pouco influenciado por uma repercussão de mídia, ou da sociedade, mas acho que o tribunal tem aplicado penas corretas, de forma serena. Tem julgado rapidamente, o que sempre tem sido nossa intenção.
Após a punição preventiva ao Corinthians, houve uma discussão sobre a validade de se punir o clube pelo ato de um torcedor. Qual é a sua opinião a respeito?
Na verdade, essa punição decorre de uma previsão do código que fala da responsabilidade objetiva do clube por ato de sua torcida. No âmbito da Justiça desportiva, falo aqui especificamente do futebol, essa questão da responsabilização do clube já está consagrada, não se discute mais. Clube e torcida são vistos como uma mesma entidade. O clube existe em função da torcida, e a torcida existe em função do clube. Você não consegue separar essas duas entidades. Então, é injusto punir outros torcedores, que não praticaram aqueles atos, por atos praticados por vândalos ou pessoas violentas? Pode até parecer injusto do ponto de vista desse torcedor, que não pode ir ao estádio apoiar seu time, mas é a única penalidade possível. É a única forma que a Justiça desportiva tem de contribuir para a diminuição da violência no âmbito da torcida. De outra forma não seria. Por que você vai punir quem? Só aquele torcedor? Às vezes você não consegue identificar um torcedor.
Como advogado, vê similaridade dessa questão com outra área, em que um grupo paga pelo ato de um indivíduo?
O direito disciplinar guarda certa semelhança com o direito penal, mas também com outras áreas do direito civil. No âmbito do direito civil, é comum ver o que se chama de responsabilidade objetiva. Por exemplo, se um carro de uma empresa, a serviço da empresa, atropela uma pessoa. A empresa arca com o dano causado. Então essa responsabilidade objetiva existe em várias áreas de direito, não só no direito disciplinar.
A liberação da torcida nos jogos no Pacaembu na primeira fase da Libertadores foi vista por muitos como uma redução da pena imposta ao Corinthians. O tribunal não teme que possa haver um desgaste em sua imagem?
Não foi isso que aconteceu (a redução de pena). Foi um fato grave e com consequências muito graves, com indícios fortes de culpabilidade. Havia torcedores presos na Bolívia, e ficou bem identificado que partiu da torcida do Corinthians. Por isso, o vice-presidente Adrian Leiza entendeu por bem aplicar uma medida cautelar. Até o julgamento daquele processo, que seria instalado, o Corinthians ficaria disputando partidas com portões fechados. O que poderia acontecer se não houvesse essa penalidade preventiva? O Corinthians poderia, de certa forma, tentar protelar a realização do julgamento, a fim de que só sofresse uma punição mais adiante. Para evitar esse artifício, que seria legítimo da defesa, o doutor Adrian deferiu uma medida cautelar, impondo essa restrição apenas até o julgamento. Quando houvesse o julgamento, ele iria substituir a medida cautelar. Então não houve uma redução, foi apenas para fazer com que as partes tivessem interesse também na celeridade do processo.
(Nota: como o caso envolvia um clube brasileiro, Caio Rocha não participou do julgamento)
(Nota: como o caso envolvia um clube brasileiro, Caio Rocha não participou do julgamento)
O San José, da Bolívia, recebeu uma multa nesse julgamento. Não seria necessária uma pena mais severa por permitir a entrada dos sinalizadores no estádio?
Olha, por estar impedido (de participar do julgamento), eu não conheço os autos do processo. Não recebi e não analisei o que existiu. Mas tenho certeza que foram levados em consideração, na aplicação dessa multa, os elementos de prova que constam no processo. Relato da arbitragem, do delegado da partida, e outros elementos que possam ter sidos acostados. Seguramente o Tribunal Disciplinar decidiu dessa forma porque verificou que a contribuição do San José não foi tão grave. No campo da suposição, talvez o San José tenha demonstrado que realizou revistas na entrada do estádio. Eventualmente, num ambiente em que vão 20, 30, 40 mil pessoas, é difícil ter um controle total.
Pela gravidade da situação, o que representou para o tribunal o caso envolvendo a morte do boliviano Kevin Espada?
O caso é hoje, na minha visão, o mais emblemático do tribunal. Tudo bem que são só três meses, mas é um caso que movimentou muitos interesses, atraiu a atenção até da Europa. Nós temos um assessor jurídico que é espanhol, e quando houve a aplicação da penalidade ele disse para mim: "Cara, aqui na Espanha o que se mostrou foi a partida do Corinthians com portas fechadas, sem torcida, e foi muito noticiado aqui como um avanço da Conmebol". E nós aprendemos muito também internamente com este caso: a questão da celeridade, a necessidade de ter um diálogo maior com a imprensa... Isso partiu dessa primeira experiência.
O Millonarios (da Colômbia) foi punido com multa depois que torcedores arremessaram objetos em campo, atingindo até um auxiliar. Qual o limite para que a pena seja mais forte, como as de Corinthians e Vélez Sarsfield, que também teve de jogar com portões fechados por causa de briga entre torcidas?
O tribunal, por ser novo, está agora estabelecendo paradigmas e precedentes. Ainda não há com clareza porque isso está sendo definido caso a caso. Talvez, ao término desta edição da Libertadores, a gente já tenha como prever quais serão as punições decorrentes de determinadas atitudes, de infrações disciplinares. Antes do julgamento do caso do Corinthians e do Vélez, se debatia: "Qual será a pena? Será que o Corinthians pode ser excluído da competição?". Porque se fazia menção às penas descritas no artigo 18. E o artigo 18 trata de todas as penas que podem ser aplicadas. Depois do julgamento do caso do Vélez, que foi realizado antes, já se podia ter uma noção de como seria o julgamento do Corinthians. A situação do Vélez foi muito mais grave, digamos, a atuação da torcida foi um tumulto muito maior. Porém, o resultado não foi tão grave quanto o do Corinthians. Isso dá uma equivalência entre as situações.
Um caso só será julgado pelo Tribunal de Disciplina se estiver na súmula do árbitro ou no relato do delegado da partida?
Não, um caso pode se iniciar de várias formas. Existe um órgão ligado ao Tribunal de Disciplina que se chama Unidade Disciplinária. Ele é responsável por receber as informações do delegado da partida, da súmula do árbitro e analisar esses documentos. Se verificar ali uma possível infração, vai dar início ao procedimento disciplinar. Pode se iniciar também por uma notícia de um interessado. O interessado pode apresentar uma queixa através de uma petição. E isso já tem acontecido. Atletas e os próprios clubes podem fazer isso. Aquela entrada dura que o Ronaldinho Gaúcho recebeu (em falta sofrida contra o Arsenal de Saradí, da Argentina), o Atlético-MG ou o próprio Ronaldinho poderia ter entrado com uma queixa, mas não o fez. Existe um prazo muito exíguo, acho que são 24 horas, a cada competição esse prazo se altera. Talvez até por não conhecer, por estar ainda se acostumando com o funcionamento do tribunal, isso não é muito comum. Aconteceu num caso recente de um atleta, acho que de um clube do Peru, que acusou ter sido vítima de racismo, de ofensas racistas por outro atleta. Esse julgamento está em andamento.
Não teme que as punições com multas por problemas com a torcida não eduque os torcedores, já que o clube é que paga?
Nós estamos tentando implementar uma cultura nova, a própria criação do tribunal vem nesse sentido. Não se pode querer uma ruptura total com o que vinha acontecendo, isso tem que ser feito de forma ponderada. Porque sabemos que se os clubes, se as federações quiserem, eles têm força política dentro da Conmebol. Força política no bom sentido que eu falo. Eles podem querer começar a reclamar demais do tribunal. Temos que traçar estratégias e punições que sejam assimiladas. A multa é uma forma de fazer com que o clube tente conter sua torcida, tente praticar campanhas de educação de sua torcida. Caso haja uma reiteração, uma reincidência, certamente as punições serão muito mais severas.
O comportamento da torcida sul-americana é diferente da europeia, o que inclui a presença de sinalizadores e outros objetos. É possível termos uma torcida no estilo europeu algum dia?
A América do Sul é diferente da Europa. Acho que sempre vai haver uma diferença cultural. Mas acho que podemos ter uma maior civilidade nos estádios, sim. Se as torcidas vão se comportar da mesma forma, isso vai variar. Até porque a questão da violência das torcidas não é exclusiva da América do Sul. Você vê casos da Inglaterra gravíssimos dos "hooligans". Isso tem evoluído. A nossa ideia também é evoluir. Mas é uma questão cultural, sim, e a gente tem que tentar mudar.
Mas no caso dos hooligans foi uma mudança radical, excluindo as equipes da Inglaterra de torneios europeus por cinco anos. Acha que precisa ser radical para mudar?
Eu acho que a gente está no caminho certo. Antes não havia nenhum tipo de penalidade e agora há penalidades e uma efetividade do tribunal. Acho que a receptividade tem sido boa, e os clubes agora estão percebendo: "Opa, minha torcida não pode fazer qualquer coisa que queira, como fazia no passado. Eu vou receber penalidades sobre isso".
Na sua opinião, quanto tempo é necessário para as torcidas começarem a se conscientizar sobre isso na América do Sul?
Eu acho, por exemplo, que a torcida do Corinthians já está conscientizada. Houve o fato, e ela foi penalizada. Hoje, ela tem consciência de que o tribunal realmente funciona, e de que um ato de violência vai prejudicar o próprio clube e o próprio torcedor. Talvez a torcida de outro clube não esteja, mas à medida que as coisas forem acontecendo, clubes, torcidas e atletas vão perceber que agora existe ordem e eles precisam tomar cuidado.
Vocês costumam conversar com o Nicolás Leoz, presidente da Conmebol?
Eu só estive com o doutor Nicolás Leoz em duas ocasiões: há uns cinco, quatro anos, estive na Conmebol representando o STJD num congresso da Fifa, e lá fui apresentado a ele; e agora, em dezembro, quando fui tomar posse como membro do tribunal. Também fui apresentado rapidamente, ele veio na sala onde nós estávamos reunidos, cumprimentou a todos e fez uma breve saudação. Então foram só duas ocasiões e não posso nem dizer que o conheço. Eu o conheço, mas certamente ele não vai nem me conhecer, não vai identificar a pessoa.
Já houve algum retorno pelo trabalho do tribunal?
Não tive nenhum retorno ainda. Não sei se o trabalho está sendo bem avaliado ou não. Mas por parte da CBF eu acredito que o tribunal está sendo bem reconhecido. Aqui (no Brasil) já tive retorno, e os dirigentes estão satisfeitos com a atuação do tribunal, embora tenha punido clubes brasileiros, mas ainda assim era caso que realmente precisava.
Como vice-presidente do STJD, como vê a maneira de atuar do tribunal e as críticas de que às vezes interfere em decisões do árbitro?
Existem dois aspectos distintos: um é em relação à questão da arbitragem, e o outro é o disciplinar. Vamos receber críticas sempre e em qualquer circunstância. O que se pode criticar às vezes é o árbitro que aplicou o cartão amarelo, e a jogada foi uma infração muito mais grave. Aqui mesmo, dentro do tribunal (STJD), temos auditores que defendem que a autoridade do árbitro é absolutamente soberana. Mas no aspecto disciplinar, de infrações, digamos de agressões, às vezes num piscar de olhos escapam à atenção do árbitro. Então nem tudo que um árbitro decide em campo é o que deve ser aplicado. Às vezes ele marca uma falta, e deveria ter expulsado o atleta. O erro da arbitragem não pode impedir que o tribunal aplique uma penalidade em relação a uma infração disciplinar. É coisa bem diferente de o tribunal estar alterando, digamos, um gol marcado em situação de impedimento. O Tribunal Disciplinar e o STJD não têm nada a ver com isso. Isso é uma questão da regra do futebol, que impõe que as decisões dos árbitros, em relação ao resultado de uma partida, são soberanas. Não se pode alterar.
No ano passado, houve o caso de um auditor que puniu Ronaldinho e em sua página no Facebook deixava claro que era flamenguista. A paixão clubística pode interferir numa decisão?
Quem atua na Justiça desportiva - seja como advogado, auditor, membro de comissão, auditor do pleno - gosta de futebol. E tem o clube da sua preferência. Todos nós somos torcedores, isso é normal. Mas, quando estamos aqui na função de auditores, vamos julgar com total isenção. Os profissionais da imprensa também têm os seus clubes de preferência, mas isso não vai alterar uma reportagem que você vai fazer, ou a narração de um radialista, ou o comentário de um comentarista. Uma coisa é a profissão, outra é a vida pessoal. Aqui todos sabemos fazer essa distinção. No caso específico que citou, houve uma infeliz coincidência. Havia uma manifestação no Facebook antiga, de dois ou três anos, fora do contexto, e certamente aquilo não foi levado em consideração pelo auditor quando proferiu seu julgamento. É um auditor sério, correto, só temos elogios a fazer à postura dele. Agora, realmente não é recomendável que ele tenha essas manifestações públicas diante da função que exerce. Terminou sendo uma forma boa de contribuir. Com esse acontecimento, já evoluímos para dar recomendações a todos os membros do STJD, das comissões do pleno, e estamos em fase de implementação de um código de ética dos auditores.
Você torce para qual time?
Torço para o Vasco da Gama. É uma questão de família, meu avô, meu pai...
Tem o hábito de ir aos estádios?
Vou. Quando estou aqui no Rio e coincide de haver um jogo na quarta-feira e uma sessão na quinta, venho na quarta (para assistir ao jogo). Mas ultimamente não tem sido muito bom, não tenho tido muita vontade de ir ao estádio, não (risos).
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